21/08/2009

Corações Valentes

Você realmente sabe o que é coragem? Conhece os fatores que o incluem, ou não, entre o grupo dos mais audaciosos? Você vai se surpreender com as respostas que existem a essas perguntas.

Por Liane Alves

Dizem que essa história aconteceu com o Garrincha. Não tenho certeza disso, não sou especialista em assuntos esportivos, mas vamos supor que ela tenha acontecido mesmo com ele. Depois de uma partida em que o jogador fez uma sucessão de dribles absolutamente fantásticos, geniais, inolvidáveis, um repórter de campo daqueles bem chatinhos queria que ele explicasse com todos os detalhes como tinha conseguido isso. E o gênio do futebol, meio encabulado, explicou: “Olha, eu não sei bem direito, só sei que eu fui fondo, fui fondo, fui fondo, até conseguir fazer o gol...”

Coragem é quando a gente vai fondo. Não importam os desafios, dificuldades e obstáculos, carregamos uma certeza que diz que é para ir em frente, e que se formos em frente pra valer, mesmo com muito medo, esse vai ser o melhor caminho.

Esta reportagem, pois, é só para dar uma ideia mais clara de onde é possível arrancar essa certeza.

Ato corajoso
Se você acha que coragem é apenas impulso emocional e ausência de medo, vale a pena conhecer as últimas pesquisas da área da neurobiologia sobre esse tema. E um dos grandes estudiosos do assunto é justamente o neurocientista e psicólogo clínico brasileiro Julio Peres. Ao longo de sua produtiva carreira, Peres especializouse na superação de traumas – isto é, no exercício de estimular a coragem em seus pacientes e de ensiná-los a superar seus medos. A novidade no assunto é que ele fez um mapeamento de como se dá essa superação por meio de tomografias computadorizadas que mostram os efeitos neurobiológicos da psicoterapia em pessoas traumatizadas. Ou seja, hoje é possível saber quais áreas do cérebro são ativadas quando uma pessoa tem a coragem de ultrapassar seus temores. E você vai cair de costas: a principal área estimulada é o córtex pré-frontal, a região ligada ao intelecto e ao planejamento de ações, e não a amígdala, uma estrutura cerebral correlacionada com o impulso emocional, a agressividade e o temor. Quem diria, a coragem é uma estratégia mental para superar o medo! Se a crença popular diz que a coragem é uma emoção nascida do coração, a ciência diz que ela é também resultado do raciocínio e capacidade de julgamento das variáveis disponíveis.

Por isso, Julio Peres prefere usar a expressão “ato corajoso” a usar “coragem”, o termo genérico. “O ato corajoso é resultado de um julgamento consciente. E julgar significa avaliar e analisar os caminhos possíveis diante de uma determinada situação. Um ato corajoso envolve capacidade de análise, equilíbrio e responsabilidade.” Quer dizer, se realmente vou ultrapassar um limite, eu o faço conscientemente, não apenas no impulso. Nessa concepção, a coragem tem muito mais peso e importância. “Esse tipo de coragem sem muita consciência pode até existir, por exemplo, num ato resultante de um reflexo instantâneo que salvou alguém de um atropelamento. Mas ela ainda é primitiva, não tem tanto valor exatamente porque não é muito consciente. É simplesmente uma presença de espírito, um expediente que deu certo, como podia não ter dado”, diz.

Segundo Peres, a coragem mais profunda é um processo de conscientização que tem a ver com ousadia, com conhecimento, determinação e capacidade de análise das variáveis. Ou seja, a coragem é ativa e não reativa. “E, nesse sentido, todos nós somos corajosos. Se chegamos à idade adulta, é porque optamos por milhares de atos conscientes e cheios de coragem que permitiram nossa sobrevivência. A coragem é um atributo comum a todos seres humanos e não uma qualidade de poucos. Somos todos heróis e vencedores, não porque fizemos extraordinários gestos grandiosos, mas simplesmente porque estamos vivos!”

Acontece que nossa memória tem o hábito de registrar com mais força e precisão as lembranças dolorosas – simples estratégia de sobrevivência para evitar que a gente caia no mesmo buraco escuro. E aí, por nos recordarmos só de nossos fracassos, acreditamos que somos medrosos, covardes, impotentes. Por isso, um dos primeiros passos para se livrar dessa autoimagem injusta é procurar se lembrar de algumas das superações de limite feitas no passado. Vale até a vez que você teve o peito de tirar as rodinhas da bicicleta.
A presença do medo Alguém aí tem ideia da etimologia da palavra covarde? Vem do francês antigo, coart, hoje couard, ou cauda arqueada – o popular rabo entre as pernas. A gente leva uma bordoada daquelas da vida e fica assim, igual a um cachorrinho, com o focinho baixo e o rabo encostado na barriga. Além de ficar com um baita medo de erguer a cabeça outra vez. Vai que lá vem bordoada de novo... É assim que estagnamos. “Procurar ajuda já é o primeiro ato de coragem. Conversar, se expor, desabafar. Acolher esse sentimento de não adequação, esse medo de ousar”, afirma Peres. “Um trauma nos congela no tempo: não conseguimos emergir daquela situação e dar o primeiro passo para ultrapassá-la no presente.”

Mas existem vários recursos terapêuticos para isso. Um deles, por exemplo, envolve os sonhos. Mais de 60% das pessoas com traumas que, no fundo, são grandes medos têm pesadelos com desagradável frequência. É possível, então, dar um desfecho diferente para os sonhos.

Outro recurso é a exposição à situação, passo a passo. No caso de alguém que sofreu um acidente e tem medo de dirigir de novo, por exemplo, a situação pode ser reconstruída no consultório, com apoio psicológico. E, na vida real, a pessoa é estimulada a voltar a dirigir: primeiro como passageiro, ao lado de um motorista em quem tenha confiança, depois tomando a direção, mas ainda com a pessoa ao lado. E depois, num curto trecho, sozinha. Eliminamse também as mesmas condições do dia do acidente, como um clima chuvoso, baixa luminosidade, estrada ruim, alta velocidade. Aos poucos, incorporam-se outras possibilidades ao cenário. Costuma funcionar. A pessoa pode estar ainda aflita e temerosa, mas a coragem de enfrentar a situação temível já é um passo para ultrapassar os traumas. A lição de ouro dessa história é: não existe coragem sem medo. Se não tiver medo, não é coragem.


Fonte:
Revista Vida Simples Ed. Abril

André e Simone Calamita
http://calamita.wordpress.com
http://www.recrutafacil.com/andreesi

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